A Copa cria o maior estADIO DA HISTORIA
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O paredão de madeira disputava lugar na arquibancada do novíssimo Estádio Municipal do Rio de Janeiro, o palco principal da Copa do Mundo no Brasil. Ocupava pelo menos 32 degraus -- de um total de 48 -- e estava localizado atrás de um dos gols, o que correspondia a 25% do maior setor do local. Por isso, o Maracanã planejado e construído para 155 mil pessoas, 93,5 mil só na arquibancada, recebera “apenas” 81,6 mil espectadores para o jogo de abertura do Mundial, disputado por Brasil e México.
No dia 24 de junho de 1950, os andaimes que impediam a lotação máxima do estádio municipal tinham, no entanto, uma função vital: eles serviam de base para a marquise e suportavam parte das suas 96 toneladas. Um dos torcedores que se misturava ao ferro e aos pedaços de madeira na arquibancada era o jovem Alfredo, de 14 anos. Como espectador, relembra a situação dos brasileiros que foram ver a abertura da Copa. “Muita gente ficou agarrada às travessas dos andaimes. Assistiam à partida com uma grade na frente”, disse. Como urbanista e arquiteto, Alfredo Britto explica o porquê da necessidade de começar um Mundial com as obras ainda em andamento. “A concretagem ainda não estava concluída. Era preciso que tivesse o suporte”, afirmou. Foi dessa forma que o coronel Herculano Gomes, engenheiro responsável por tocar a construção do estádio, resolveu o problema da falta de tempo. Antes, nos últimos meses da obra, na iminência do atraso na entrega da praça esportiva, o coronel não hesitou em subir no topo de um trecho da marquise acima das tribunas. Lá de cima, a 32 metros de altura, viu um tanque do Exército puxar o escoramento do setor com um cabo de aço. O episódio resumia bem o que ocorrera nos últimos 22 meses naquele terreno às margens do rio Maracanã. Uma obra gigantesca, fruto de disputa política, feita às pressas, numa espécie de auto-afirmação brasileira de que um país subdesenvolvido era capaz sediar uma Copa do Mundo. Os argumentos para que o Maracanã brotasse na área alagadiça do antigo Derby Club não foram poucos. O Rio de Janeiro, capital do Brasil à época, deveria seguir o exemplo paulista, que inaugurou o Pacaembu 10 anos antes. O futebol, com uma profissionalização que ainda engatinhava, precisava ser valorizado. Os jornais não economizavam críticas à demora na decisão por um novo estádio. A burocracia, mais intensa entre junho e novembro de 1947, resultou numa obra inacabada no mês da Copa. Além disso, o prazo de entrega, previsto para abril de 1950, não foi cumprido, tampouco a previsão dos custos. Segundo relatório da Adem (Administração dos Estádios Municipais), divulgado nos primeiros dias de 1949, o Estádio Municipal estava “oficialmente estimado” em 150 milhões de cruzeiros. Vinte e dois meses de obra, no entanto, trataram de descumprir a previsão. O documento da Adem foi assinado pelo mesmo homem que arriscara a vida, ao subir na marquise do maior estádio do mundo, para mostrar que parte dela estava concluída. O coronel Herculano Gomes, escolhido a dedo pelo prefeito Mendes de Moraes, já tinha grandes obras no currículo quando se tornou o principal engenheiro da construção do Maracanã. Fora ele o responsável pelo Panteão do Duque de Caxias, à frente do Ministério do Exército, no Rio de Janeiro. A intensidade de uma obra do porte do novo estádio municipal mudou a vida do coronel. Além de trabalhar contra o relógio e sem chance de prorrogação -- a Copa começaria na primeira quinzena de junho (6) --, Herculano teria que dar satisfações periódicas sobre o andamento da construção. Não foram poucas as vezes em que os jornais da época trouxeram textos assinados pelo coronel. “A tarefa teve suas fases árduas, mas nunca faltou a palavra de ânimo e de encorajamento do Comando [da Adem] para realizar os desalentados. É assim que está se processando a “Batalha do Estádio Municipal”. Com a Copa batendo à porta e a necessidade de rapidez e organização, requisitos que Herculano possuía, o engenheiro mais importante do Maracanã mudara de lar. Deixou mulher e filho na sua residência no Jardim Botânico e passou a morar no canteiro de obras. Dali, seria mais fácil tentar seguir o cronograma e entregar o novo estádio a tempo. As atribuições dele começavam no relacionamento com as empreiteiras, passavam pela vistoria de todos os materiais da obra e terminavam no planejamento diário da construção. Era um faz-tudo, indispensável e insubstituível. O engenheiro explicava e liderava até as obras no entorno do estádio, como a realizada na avenida Maracanã, em janeiro de 1950. Por conta do estouro do orçamento da obra, Herculano, porém, ficou na mira do prefeito Mendes de Moraes, que exigiu a entrega de um último relatório da Adem, nos moldes do assinado pelo próprio Herculano no início de 1949, contendo valores da construção e dados sobre os materiais usados. O ultimato veio 44 dias após a final da Copa. Caso Herculano não apresentasse o documento, Mendes de Moraes tomaria as devidas providências. Com seis meses de auditoria, o processo rendeu 22 volumes e 186 laudas. Nada foi provado contra o coronel, mas as marcas na carreira de Herculano Gomes ficaram para sempre. |
Estádio sob a batuta de quem?
Mendes de Moraes, empossado e nomeado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra em 16 de junho de 1946, cobrava porque era cobrado. No caso dele, o opositor era Carlos Lacerda, da UDN (União Democrática Nacional). O objetivo era claro: não deixar a obra do Maracanã enaltecer o governo do PSD (Partido Social Democrático). Para isso, o deputado udenista usava as páginas do seu próprio jornal, o “Tribuna da Imprensa”, para atacar o governo e contestar a construção do novo estádio. De acordo com Lucia Hippolito, historiadora política, opor-se às atitudes de Moraes era uma estratégia da UDN carioca. “Só poderiam chegar ao poder combatendo a prefeitura, elegendo um novo presidente da República ou dando um golpe”, disse. Desde o início, ainda no período em que o Maracanã nem era projeto, Lacerda havia escolhido a primeira opção. A “Batalha do Estádio Municipal” começara nove anos antes da inauguração do Maracanã, quando Getúlio Vargas, em abril de 1941, exatamente na metade do Estado Novo (1937-45), criou o CND (Conselho Nacional de Desportos). Era necessário dar importância ao esporte nacional e foi a partir da criação do órgão que o Maracanã começou a se tornar realidade. Gustavo Capanema, ministro da Educação e da Saúde, foi o responsável por um concurso para a escolha do projeto arquitetônico. Oscar Niemeyer já havia apresentado ao governo um projeto de estádio de futebol, mas a opção foi rechaçada pelo Estado Novo. Seis anos depois, a sugestão do arquiteto seria novamente preterida pelo júri. Ao final da concorrência, os arquitetos Antônio Dias Carneiro e Pedro Paulo Bastos passaram de vencedores a perdedores quando o próprio ministro barrou o projeto. De olho na obra, a prefeitura pediu, então, novos estudos, com os trabalhos de Rafael Galvão e Orlando Azevedo. O estádio, com isso, se transformava na causa do embate entre as esferas federal e municipal. O cenário prorrogaria a discussão sobre o Maracanã. Foram necessários mais de seis anos para que se voltasse a falar no assunto. A oficialização do Brasil como sede da Copa, em 25 de julho de 1946, encarregou-se de trazer à tona o antigo anseio de construir uma grande praça esportiva. No dia 4 de setembro de 1946, exatamente 41 dias após a escolha da Fifa, foi instalada uma comissão ainda na gestão do prefeito Hildebrando Goes para estudar o plano de construção de estádios. Nomeada pela Presidência da República, a comissão teria a liderança de Gabriel Monteiro da Silva, então ministro da Educação. A primeira reunião ocorreu no mesmo dia, no gabinete do Ministério. Em meados de 1947, o prefeito Goes levantou uma hipótese: o estádio carioca da Copa poderia ser o São Januário. Afirmou então que, caso não ocorresse a construção de um novo estádio, a prefeitura ajudaria a CBD na ampliação da casa vascaína. Além disso, cuidaria da urbanização ao redor do campo no bairro Benfica. Já ocorriam, de acordo com Goes, encontros entre o secretário de Finanças da prefeitura, João Lyra Filho, e o presidente da CBD, Rivadávia Corrêa Meyer. Na pauta, a divisão de encargos entre as duas autarquias para que ocorresse a preparação carioca para a Copa. A prefeitura ficaria responsável pela urbanização e a CBD, pelo estádio, com finaciamento do Banco da Prefeitura. A reforma no entorno de São Januário, orçada em 45 milhões de cruzeiros, foi aprovada em plenário no dia 6 de maio de 1947. Parte do montante, 20 milhões de cruzeiros, seria colocada em prática ainda no exercício atual para a remoção de uma favela próxima ao estádio. Segundo o urbanista e arquiteto Alfredo Britto, a região, vertente do morro do Pedregulho, passou por uma revitalização prevista pelo DHP (Departamento de Habitação Popular). Inaugurado após a Copa, o projeto levou, assim como o Maracanã, o nome do prefeito Mendes de Moraes. O discurso ufanista de que a construção de um novo estádio impressionaria o mundo tratou de refutar a alternativa de mandar os jogos da Copa a São Januário -- o estádio, no entanto, recebeu 13 partidas da Copa América de 1949. “A construção do Maracanã seria a prova de que o Brasil podia sediar uma competição de grande porte, embora fosse subdesenvolvido”, disse o jornalista e historiador Roberto Assaf. A posse de Mendes de Moraes, dali a três meses, ajudou a acelerar o processo. Faltava, contudo, o projeto e o local para a construção do estádio, fosse ele municipal ou federal. |
Os moleques da Tijuca e o terreno abandonado
Um muro alto cortava o terreno grande e abandonado. De um lado, a linha férrea. Do outro, as pistas ainda estreitas da rua Derby Clube (atual Professor Eurico Rabelo). As competições já não ocorriam desde o início da década de 1930, quando o Jockey Club e o Derby Club se juntaram para formar o Jóquei Clube Brasileiro. “Lá dentro, além da parte circular da pista de carreira, havia uma porção de obstáculos para trabalhos de cavalos em concursos hípicos. Tinha também enormes arquibancadas, de ferro e de madeira”, lembra o general Jonas Correia Neto, que ainda criança viu a mudança do cenário. Se antes os muros eram barreiras impossíveis de transpor, após a mudança do Derby Club já não eram mais. Bom para a meninada da Tijuca, que passou a usar o local como palco de brincadeiras de crianças. Um deles era o próprio general Jonas. Era só atravessar a rua rua Derby Clube e ele já estava no terreno abandonado. Munido de uma arminha de chumbinho, caçava calangos no local cheio de mato. Era preciso, no entanto, dividir o espaço com as viaturas militares que chegaram ao país por meio do acordo militar Brasil-Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. De acordo com o general, a área foi se deteriorando, pois ficou muito tempo desativada. “Ninguém tratava porque não tinha finalidade, então estragou tudo. A maioria não utilizava o terreno para nada. Muitos talvez nem soubessem que ali existia um lugar que tinha sido uma área de dérbi”, afirmou. A remoção dos galpões existentes no terreno só ocorreria por completo a partir de março de 1948, quando cerca de 200 homens já trabalhavam na obra do Maracanã. O garoto Mário Jorge, que também morava nas imediações, tinha apenas 16 anos quando, em junho 1947, o terreno foi apontado como o local mais adequado para a construção do Estádio Municipal. “Quando já estava determinado que ali seria o estádio, joguei uma pelada no Derby Club”, conta. A história de Mário Jorge Lobo Zagallo, porém, não se limitou a um breve bate-bola no terreno do maior estádio do mundo. Zagallo transformaria o quintal de sua casa em palco principal de sua própria vida. Primeiro como militar, depois como ponta-esquerda do Botafogo e da seleção. O mesmo ocorreu com o menino Calé. Nascido em Madureira, mudou para a Tijuca e viveu parte da infância ali. Ele também vira, nos primeiros anos de vida, a instalação do quartel do Exército no hiato entre o Derby Club e o Maracanã. Nunca entrou no terreno antes de o estádio ser erguido. Ironia pura, pois, a partir de 1958, quando o maior estádio do mundo já tinha completado oito anos, Calé virou funcionário do Maracanã. Nunca mais saiu de lá e se tornou o trabalhador mais antigo do estádio. Mesmo morando tão perto, os três tinham apenas o Macaranã como fator comum. O general Jonas vivia rua Derby Clube. Zagallo, na professor Gabizo, e Calé, na rua Ibituruna. Presenciavam as corriqueiras enchentes que ocorriam no bairro após o rio Maracanã transbordar. “Na rua São Francisco Xavier havia uma mureta. A gente via a água suja correr”, disse o general, que se recorda dos alagamentos a partir de 1936. As inundações se tornariam um dos argumentos da prefeitura para bater o martelo e escolher o antigo terreno como o local do estádio. Com a construção, obras no entorno do Maracanã poderiam extinguir o problema de uma vez por todas. O tempo se encarregaria de desmentir a promessa. |
O Gigante quer sair do chão A disputa pela paternidade da obra acabara pouco antes da posse de Mendes de Moraes, no início de junho de 1947. A localização do terreno da prefeitura fora determinante para tornar a municipalidade responsável pela construção. A partir de então, o planejamento passaria pela parte mais burocrática, que iria perdurar até o final de novembro, data em que o governo havia acertado legalmente os preparativos da obra. De acordo com o “Jornal do Brasil”, Mendes de Morais enviou ao presidente Dutra no final de julho de 1947 um documento expondo os motivos da construção do Estádio Municipal. Além disso, prestou contas e mostrou quais providências haviam sido tomadas até então. Por ora, eram poucas. A Secretaria de Finanças do Distrito Federal e o presidente do Conselho Nacional de Desportos, João Lyra Filho, apresentaram poucos dias antes uma proposta de financiamento, com garantias vindas da venda antecipada de 30 mil cadeiras cativas. Ela começaria em janeiro de 1948 e por muito tempo serviu de argumento contra os ataques de Carlos Lacerda. O Banco da Prefeitura, então, concedeu o crédito ao poder municipal. Com o problema resolvido, um novo obstáculo surgiu: o local da obra. O terreno do Derby Club não era da prefeitura, como se pensava. O dono era, na verdade, o Jockey Club. Em permuta, o município, então, cedeu uma área próxima à lagoa Rodrigo de Freitas, tornando-se dona do espaço e ratificando a posição de responsável pela construção do estádio. Era preciso, no entanto, retomar a escolha do melhor projeto. Correr também era necessário, pois a Copa estava prevista para 1949 e, dessa forma, o Rio de Janeiro só teria 24 meses para erguer o estádio. Para isso, instalou-se uma equipe, entitulada Comissão dos Sete, com Marques Porto na chefia. “O projeto que venceu o concurso de 1941 tinha pontos positivos e negativos. O segundo colocado também. Juntou-se os dois, então”, disse o urbanista Alfredo Britto. Dessa forma, Antônio Dias Carneiro e Pedro Paulo Bastos, a dupla vencedora, e Rafael Galvão e Orlando de Azevedo Neto, os perdedores, tiveram a incumbência de projetar o maior estádio do mundo. Para isso, receberam 1,7% do montante da obra, o que correspondia a pouco mais de 2,5 milhões de cruzeiros. Segundo relatório da Adem de janeiro de 1949, a porcentagem era “bastante inferior” à tabela oficial, estimada em 3,2%. Aos engenheiros civis, responsáveis pelos cálculos estruturais, mais um gasto abaixo do que normalmente se pagava. “Pleiteou esta equipe, de acordo com a tabela oficial, o pagamento da taxa de 2,4% sobre o montante do orçamento, tendo aceitado o pagamento na base de 1,4%”. A escolha do projeto não fez com que governo e oposição falassem a mesma língua. No início de agosto de 1947, Mendes de Moraes enviou à Câmara um texto sobre a construção do novo estádio. Começou, então, uma briga política quase polarizada pelo eterno opositor Carlos Lacerda e o deputado Ary Barroso. O líder da UDN era a favor de um estádio em Jacarepaguá. “Era uma região completamente desabitada ou pouquíssimo habitada, com fazendas. A ideia era construir ali porque tinha espaço. E não construir na zona urbana, onde tinha tudo”, disse Roberto Assaf. Em plenário, Ary Barroso alegou que o terreno de 200 mil metros quadrados do antigo Derby tinha preferência porque já era servido por uma rede ferroviária. Além disso, seria inviável criar alternativas de transporte para o bairro de Jacarepaguá, indicado por Lacerda. “Foi feito um estudo geológico e de localidade na área do Derby. Além disso, era próximo do centro, da zona sul e da zona norte”, disse o urbanista Alfredo Britto. Para Roberto Assaf, a ideia da oposição era construir em um lugar desabitado. Na tentativa de agilizar o processo e convencer os deputados de que o estádio aceitação popular, Ary Barroso divulgou uma pesquisa de público sobre a construção do estádio municipal. Entre os frequentadores de estádios, 95% eram favoráveis à construção de um novo complexo. Entre a população geral, 79,2% queriam uma nova praça de futebol na capital do Brasil. Segundo Assaf, o jornalista Mário Filho também foi um incansável defensor da obra. “Quem bancou a construção do Maracanã foi ele, através de uma campanha feita no ‘Jornal dos Sports’, que tinha muita força na época”. A preparação brasileira recebeu uma boa notícia no dia 23 de setembro de 1947. Após reunião anual da Fifa, foi proposta uma nova data para o torneio. Caso o Brasil concordasse, a Copa seria disputada somente em 1950. O adiamento foi aprovado pela diretoria da CBD. Dessa forma, o país passou a ter 34 meses e sua preparação para o torneio, e não mais 22. Mas foi somente no final de outubro que o Maracanã virou quase unanimidade. Por 28 votos a seis, o Projeto de Lei, cujo relator era Iguatemi Ramos, foi aprovado pela Câmara Municipal: “Pela lei nº 57, de 14.11.1947, ficou a prefeitura autorizada a tomar as medidas necessárias para a construção do Estádio Municipal do Distrito Federal”, dizia o trecho do relatório da Adem. A lei que aprovava o projeto independentemente de concurso gerou protestos do Instituto de Arquitetos do Brasil. A entidade mandou um telegrama à prefeitura pouco tempo depois criticando a postura de Mendes de Moraes. O texto do Projeto de Lei também concedia um crédito de cinco milhões de cruzeiros, relativos aos gastos com concursos e execução dos projetos. Cinco dias depois, foram criadas a Comissão Executiva do Estádio Municipal e o Conselho Consultivo. As duas seriam extintas no dia 25 de maio de 1948, após 41 reuniões da comissão e 25 encontros do conselho. Em substituição, uma única autarquia: a Adem. A nova entidade era autônoma e estava sujeita à fiscalização da prefeitura. Para se manter, a entidade tinha direito a 15% das arrecadações do novo estádio e também podia arrendar campos, quadras e pistas. Meses antes, ocorreu a concorrência pública para o início dos trabalhos de fundações, escavações e construção de estruturas em concreto armado. O processo de licitação começou após a publicacão do edital no DOU (Diário Oficial da União), em 23 de janeiro de 1948. No dia 18 do mês seguinte, cinco licitantes apresentaram propostas (dois consórcios, um com seis empresas e outro com duas, além de três construtoras isoladas). Vencedor, o maior consórcio assinou o contrato em 10 de junho, com publicação do documento no DOU no dia 23. Segundo o acordo, o valor total da fase estava estipulado em 68,5 milhões de cruzeiros e o consórcio teria 300 dias úteis -- ou 12 meses -- para executar o trabalho. Caso o prazo não fosse cumprido, a Adem poderia aplicar multa. Além disso, o texto deixava clara a preocupação com a segurança. A prefeitura, na ocasião, exigiu a confecção a cada 28 dias de “corpos de prova de cilíndricos”. Eles teriam a função de controlar a resistência do concreto, estipulada em 201 quilos por centímetro quadrado. Apesar dos engenheiros civis Antônio Alves Noronha, Paulo Fragoso, Sérgio Marques de Sousa e Alberto Rodrigues da Costa projetarem uma construção sem plantas detalhadas, a estrutura do Maracanã impressionou pela solidez -- fato comprovado ao longo dos anos. A justificativa é simples: sem referência, os cálculos do estádio foram feitos com muita folga, possibilitando esse tipo de estrutura. Em maio, o coronel Herculano Gomes reunira a comissão logo após a implantação da Adem. Chamou as empresas vencedoras da licitação e traçou metas. A previsão do engenheiro era começar as obras em meados de junho. Mas, de acordo com um relatório do órgão, o pontapé inicial se deu somente da no dia 10 de agosto. O lançamento da pedra fundamental, contudo, ocorreu no dia de São Sebastião, padroeiro da cidade, em 20 de janeiro, às 10h, com a presença do presidente Dutra. Em sete meses, foram realizados apenas os trabalhos menores, como a remoçäo dos galpões do Exército. Dez dias antes do começo efetivo da construção, a Adem realizou um empréstimo de 40 milhões de cruzeiros com o Banco da Prefeitura. O valor serviu para cobrir os primeiros gastos da obra, incluindo o pagamento à equipe de arquitetos e calculistas. Só o serviço topográfico e a desmontagem dos pavilhões custaram 246 mil cruzeiros. Na Adem, o empréstimo serviria também para o pagamento de funcionários, de publicidade e do material. Só em propaganda, até o final de 1948, a autarquia gastou 120 mil cruzeiros. A fiscalização das operações financeiras era de responsabilidade de um conselho fiscal composto por cinco membros. Paralelamente, ocorria na cidade a venda das cadeiras cativas. Desde janeiro, após a instituição de um grupo chamado de Comissão dos 30, com Herbert Moses à frente, já havia distritos de arrecadação localizados em diversas regiões da cidade, como os subúrbios da Central do Brasil e da Leopoldina. O “Jornal do Brasil” se dispôs a esclarecer a Campanha das Cadeiras Cativas, pois ela era capaz de “financiar a construção sem nenhum ônus”. Na teoria, era mesmo possível, pois o comprador da cadeira pagaria cinco mil cruzeiros por cinco anos de exclusividade - financiados em 20 vezes, com parcelas de 230 cruzeiros por mês. Os 10 mil primeiros compradores poderiam renovar o título pagando mensalidade de 100 cruzeiros. Depois de 20 meses, no início de setembro de 1949, sob novo decreto da prefeitura, foram postas à venda cinco mil cadeiras perpétuas, ao preço de 20 mil cruzeiros. Uma das medidas utilizadas pela Comissão dos 30 foi nomear membros em locais fora da cidade, como São Paulo, Belo Horizonte e Niterói. No Rio, os pontos de venda eram os 14 distritos da prefeitura, o Tênis Club (situado à rua Haddock Lobo), a ourivesaria e joalheria “A Mascote de Ouro” (na rua da Assembleia). Com a divulgação, as vendas chegaram a 608 cadeiras e 355 inscrições até o final de dezembro de 1948. O valor arrecadado foi de 539, 8 mil cruzeiros. O presidente Dutra e o prefeito Mendes de Moraes compraram as cadeiras número 1 e 2, respectivamente. Foram os primeiros a contribuir e atender ao pedido da comissão. De acordo com uma propaganda veiculada nos principais jornais da cidade, cada cadeira vendida significava mais pedra, mais cimento, mais ferro para a construção do estádio. Uma obra em 675 dias Até 31 de dezembro de 1948, quando a construção do estádio caminhava para o sexto mês, a Adem já havia gastado 10,4 milhões cruzeiros só com material. O entra e sai de caminhões impressionava os moradores acostumados com o sossego do terreno abandonado de meses antes. A proporção que a obra tomou à certa altura também impressionou Zagallo: “Eu passava pela obra e achava a estrutura muito grande. Pensava onde arrumariam torcida para encher aquilo”, contou. A obra, porém, não começou com muitos funcionários -- eram 200 no início --, principalmente se comparada com os últimos meses. Mas exatamente um ano após o começo da construção, 1.481 operários ajudavam a erguer as arquibancadas. O número de trabalhadores foi divulgado pela Adem a fim de acabar com rumores de que teriam ocorrido deserções e dispensas. À época, a prefeitura tinha a previsão de erguer o Maracanã até abril de 1950. Dessa forma, em janeiro de 1950, 2,8 mil operários trabalhavam na obra. "Era impressionante. Parecia mesmo que seria uma coisa muito gigantesca. Era um verdadeiro exército de gente trabalhando ali”, disse Calé. A quantidade de sobras de material também aumentou à medida que a construção avançava. No entorno do estádio, restos de madeira se acumulavam, misturando-se aos caminhões de carregamento. O destino das sobras de material, no entanto, não foi o canteiro de obras. Os pedaços de madeira foram levados até um prédio abandonado, onde funcionaria o hospital Pedro Ernesto. Oposto à avenida Maracanã e à estrada de ferro, o local tornou-se embrião da favela do Esqueleto. “Nós do bairro ficávamos vendo, mas nunca passávamos para o outro lado porque a gente tinha medo da favela”, afirmou Calé. Durante toda a década de 1950, a Favela do Esqueleto fez parte do bairro do Maracanã. Depois, no início dos anos 60, foi removida por Carlos Lacerda, prefeito à época. Os moradores foram deslocados para uma área na zona norte, perto de Bangu, 35 quilômetros distante do centro da cidade. Deram origem à Vila Kennedy e à Vila Aliança. Hoje, o local abriga a UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Durante a formação da favela do Esqueleto, as ruas no entorno do estádio passaram por algumas transformações. A principal ocorreu na avenida Maracanã. As pistas foram alargadas, com a demolição de prédios e residências. Segundo o urbanista Alfredo Britto, as medidas faziam parte de um plano de circulação. “As casas eram coladas ao terreno. Foram demolidas para permitir uma nova estrutura viária.” As desapropriações se davam por meio de decreto, assim como ocorrido na cidade no começo do século, quando o prefeito Pereira Passos autorizou a demolição de quase 600 casas para a construção da avenida Rio Branco. No Maracanã de 1950, as desapropriações ocorreram praticamente em todas as ruas que circundavam o terreno. Na rua Professor Eurico Rabelo, onde se encontra até hoje a residência do general Jonas, a prefeitura adotou outro método. “Aproximaram o muro do estádio. Depois da construção do estádio, a rua tomou a largura atual”, disse o oficial. O mesmo não ocorreu na rua Mata Machado, onde sumiram as velhas casas e houve o encurtamento da via. Para a Copa, também estava prevista a abertura de uma nova estação na estrada de ferro, a 200 metros do portão central do estádio. De acordo com o projeto inicial, a prefeitura construiria túneis de acesso. Preteridos, deram lugar às rampas de entrada (hoje, rampas da UERJ). Durante a Copa, além dos trens da estrada de ferro, havia mais dois tipos de transporte público: os bondes e os ônibus. “Éramos servidos por bondes na rua São Francisco Xavier. Os ônibus eram da (companhia de eletricidade) Light, compridos e fortes, com dois tipos de assentos, de couro e pano, muito cômodos”, contou Jonas. Para os automóveis particulares, estava reservada uma área com 2,7 mil vagas no complexo esportivo. Pouco antes da inauguração, Herculano Gomes se reuniu com o inspetor geral de tráfego, Major Meneses Cortes. A ideia era apontar medidas para o bom fluxo das ruas ao redor estádio. A maioria da população, porém, chegaria ao Maracanã pela nova estação de trem. Só que o início das obras foi tardio. Ocorreu somente em janeiro de 1950, a apenas cinco meses da abertura do Mundial. O estádio também apresentava um cronograma apertado. As arquibancadas já estavam concluídas, mas a marquise começava a se tornar uma preocupação. Somente nos primeiros dias de fevereiro a cobertura começou a tomar forma. Para agilizar a entrega de materiais, o prefeito Mendes de Moraes conseguiu tomar emprestado caminhões de carga do Exército que se juntariam à frota da prefeitura. Foi nesse cenário que Herculano Gomes teve a ideia de adicionar uma resina especial na marquise. O objetivo era realizar a secagem do concreto em um tempo menor. O próximo passo do coronel seria o ponto mais alto da cobertura, onde vira parte do madeiramento ser derrubado. Não havia escolha. A pressão sobre o coronel aumentava à medida que a data de abertura do Mundial chegava -- meses antes, em meados de setembro, a obra recebeu a visita do presidente da Fifa, Jules Rimet. O dirigente, apreensivo, pôde acompanhar o ritmo acelerado da construção. Quando retornou ao país, já de forma definitiva para acompanhar a competição, em 2 de junho de 1950, a apenas 22 dias do jogo inicial da Copa, o presidente da Fifa ainda não encontrou o Maracanã pronto para receber uma partida de futebol. Tanto que a inauguração do estádio, com o confronto entre as seleções de novos do Rio de Janeiro e de São Paulo, foi adiada do dia 28 de maio para 17 de junho. Na noite anterior ao jogo, operários e engenheiros bateram uma bola sobre o gramado de 110 metros de comprimento por 75 de largura. Os homens responsáveis pela maior obra de estádio até então jogavam para apenas um espectador: o paredão de madeira, o mesmo que ocupou o lugar de quase 70 mil brasileiros nas arquibancadas do Maracanã durante a abertura da Copa. Na ânsia de finalizar a obra, o Exército foi chamado para auxiliar mais uma vez. Era preciso remover algumas tábuas de madeira que já não eram necessárias para a sustentação da marquise. Entre os soldados, Zagallo, com 19 anos incompletos. O jovem ponta-esquerda também prestaria outro serviço ao Brasil durante a Copa. Em três jogos do Mundial, com unifome verde-oliva, capacete e cassetete, zelou pela segurança dos torcedores que foram à arquibancada do Estádio Municipal. “Não houve qualquer problema durante os jogos. O único incidente foi perder para o Uruguai”, disse. Além da abertura e do jogo final, o Maracanã recebeu mais seis jogos. Três deles foram disputadas por equipes que não faziam parte do grupo da seleção brasileira. Um dia após o Brasil vencer o México no jogo inaugural da Copa, Inglaterra e Chile entraram em campo para apenas 29,7 mil torcedores. Ainda menor foi o público que acompanhou o confronto entre espanhóis e chilenos: somente 19,7 mil espectadores. Na última rodada da primeira fase, 74,6 mil novos aficionados por futebol viram a Espanha despachar a Inglaterra e passar ao quadrangular final. Depois da estreia, o Brasil voltou ao estádio contra a Iugoslávia. Sem o paredão de madeira, 142.429 torcedores acompanharam a vitória brasileira. Na fase final, casa cheia também para os dois jogos que antecederam a derrota fatídica para os uruguaios. Contra a Suécia, 138 mil torcedores. Diante da Espanha, 152 mil. Na derrota para o Uruguai, 173 mil espectadores, oficialmente, superlotaram o maior estádio do mundo. Viram o pior golpe no futebol brasileiro. Golpe assimilado e devidamente superado oito anos depois, em campos suecos. As pessoas que estiveram envolvidas direta e indiretamente na construção do Maracanã tiveram diversos destinos. Mendes de Moraes, que saiu da prefeitura em abril de 1951 e voltou a reintegrar o Exército, deixou de conceder o seu nome ao estádio -- seu busto à frente do portão principal, inaugurado em 17 de junho de 1950, já havia sido derrubado após a derrota para o Uruguai. Em setembro de 1966, o Maracanã tornou-se o estádio Jornalista Mário Filho, uma homenagem ao grande iNcetivador da obra. O Estádio Municipal também mudara a história de alguns outros moleques da Tijuca, assim como fez com Calé e Zagallo. Herculano Gomes, o responsável pela impressionante construção em tempo recorde, não teve a mesma sorte. Morreu esquecido, sem reconhecimento, em janeiro de 1963. Hoje, a única alusão a ele é uma rua no bairro de São Cristovão, a 900 metros da entrada principal do estádio que mudou a vida dele e de tanta gente. |